Novo acórdão sobre remessas à Comissão: o processo Brasserie

2025-07-29T16:55:00
União Europeia

O TGUE pronuncia-se sobre um novo litígio relativo ao artigo 22.º. do Regulamento das Concentrações

Novo acórdão sobre remessas à Comissão: o processo Brasserie
29 de julho de 2025

Introdução

O artigo 22.º do Regulamento (CE) 139/2004, sobre o controlo das concentrações de empresas (o “Regulamento das Concentrações”) permite aos Estados-Membros (“EM”) solicitar à Comissão Europeia (“a Comissão”) que examine uma concentração que, embora não tenha dimensão europeia e não seja notificável a nível nacional, possa afetar o comércio entre os EM e ameace afetar de forma significativa a concorrência no território do Estado requerente. Este mecanismo reveste-se de especial importância nos EM que carecem de um regime nacional de controlo das concentrações, embora atualmente o único caso seja o do Grão-Ducado do Luxemburgo. Nesses casos, o artigo 22.º do Regulamento das Concentrações torna-se no único meio para examinar determinadas operações que, de outro modo, escapariam ao controlo.

Embora o famoso acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) sobre a remessa da operação Illumina/Grail à Comissão (processos apensos C-611/22P e C-625/22P) parecesse ter clarificado definitivamente a interpretação do artigo 22.º do Regulamento das Concentrações, o recente acórdão do Tribunal Geral (“TGUE”) no processo Brasserie Nationale e Munhowen/Comissão Europeia (T-289/24) constituiu um novo marco na interpretação e aplicação deste artigo, demonstrando que existem ainda algumas questões que permanecem em aberto. Tal resulta de um interesse crescente da Comissão e das autoridades nacionais da concorrência em examinar operações que não atingem os limiares de notificação tradicionalmente baseados no volume de negócios das partes, mas que, à primeira vista, podem apresentar riscos para a manutenção de uma concorrência efetiva no mercado - em especial, mas não só, as chamadas killer acquisitions. A este respeito, vários EM (por exemplo, Itália, Dinamarca ou Suécia) introduziram nos seus regimes de controlo das concentrações os denominados call-in powers, ou seja, o poder de investigar concentrações que representam um risco para a concorrência, mesmo que não atinjam os limiares de notificação previstos na legislação local.

A investigação de concentrações que não atingem os limiares acima referidos já têm sido impugnadas, como exemplifica o caso NVIDIA/RUN:AI, que ainda está pendente no TGUE (processo T-15/25).

No processo Brasserie Nationale e Munhowen, a Comissão aceitou a remessa de uma concentração entre duas empresas da indústria cervejeira luxemburguesa. No seu acórdão, o TGUE reforçou o âmbito temporal e material da remessa contemplado no artigo 22.º do Regulamento de Concentrações. 

Caso Brasserie Nationale/Munhowen c. Comissão

Em 22 de dezembro de 2023, a Brasserie Nationale SA (“Brasserie Nationale”) comunicou a Autoridade da Concorrência luxemburguesa (“ACL”) a intenção da sua filial Munhowen SA (“Munhowen”) de adquirir a empresa Boissons Heintz Sàrl (“Heintz”).

A ACL reuniu-se com as empresas adquirentes em 10 de janeiro de 2024, altura em que foi aberto um prazo que permitia a terceiros fornecer à ACL informações adicionais sobre a concentração, o que foi decisivo. Em 17 de janeiro de 2024, um terceiro forneceu informações relevantes à ACL e, em 25 de janeiro, a autoridade foi formalmente convidada a remeter o exame da operação à Comissão. Em 7 de fevereiro, a ACL apresentou o pedido de remessa e, em 14 de março, a Comissão aceitou-o. A Brasserie Nationale e a Munhowen recorreram da decisão da Comissão para a TGUE, embora o procedimento de controlo das concentrações tenha prosseguido (a Comissão autorizou a operação em 17 de julho de 2025 (processo M.11845), sob reserva do cumprimento de compromissos, incluindo a alienação das atividades da Heintz no mercado da distribuição de bebidas no canal HORECA (hotéis, restaurantes e cafés), bem como da marca, da loja online e das exclusividades estratégicas de importação).

O aspeto inovador: o conceito de made known e os efeitos da comunicação de uma concentração no sistema de remessa

As recorrentes contestaram e negaram que o pedido de remessa tivesse sido apresentado no prazo de 15 dias previsto no n.º 1 do artigo 22.º do Regulamento das Concentrações. De acordo com a redação da disposição, este prazo começa a correr a partir do momento em que uma concentração é notificada ou, se não for obrigatória, a partir do momento em que é comunicada ao EM interessado. Para as empresas, esta comunicação correspondeu às informações que apresentaram à ACL em dezembro de 2023. No entanto, o TGUE rejeitou estes argumentos e confirmou a decisão da Comissão de aceitar a remessa. Na sua essência, o TGUE considerou que a comunicação das empresas à ACL não cumpria a informação mínima necessária para que a ACL efetuasse a análise preliminar da concentração e, se fosse caso disso, solicitasse a remessa, pelo que o prazo legal para tal pedido não se tinha iniciado. A ACL apenas dispunha das informações relevantes para o efeito após a intervenção dos terceiros, pelo que o pedido de remessa foi efetuado dentro do prazo legal.

Na sua fundamentação, o TGUE analisa a noção de made known no contexto do artigo 22.º do Regulamento das Concentrações. O TGUE considera que não é suficiente que a autoridade nacional tenha conhecimento da existência da operação: é imprescindível que receba informações suficientes para efetuar uma apreciação preliminar sobre se as condições de remessa estão preenchidas. Assim, o CG considera que a notificação deve incluir todas as informações necessárias para avaliar a concentração, de forma análoga às informações exigidas num formulário de notificação nos EM com um regime de controlo das concentrações. Esta interpretação seria coerente com o princípio da transmissão ativa de informações relevantes para o controlo das concentrações e está em consonância com a intenção do legislador comunitário de criar um sistema eficaz e uniformemente aplicado em toda a UE.

Além disso, o TGUE sublinha que o ónus da transmissão desta informação cabe, em primeiro lugar, às partes interessadas, embora possa também provir de terceiros ou de qualquer outra fonte. As autoridades nacionais da concorrência não estão obrigadas a procurar ativamente informação adicional, podendo permanecer passivas até receber os dados relevantes.

Conclusões e próximos passos

O acórdão do TGUE está sujeito a recurso para o TJUE, o que é previsível. Se for confirmada, a interpretação do artigo 22.º do Regulamento das Concentrações atribui às empresas uma responsabilidade ativa no fornecimento de informações à autoridade da concorrência na ausência de um regime nacional de controlo das concentrações e consolida a possibilidade de uma ação passiva por parte da autoridade da concorrência enquanto não forem fornecidas informações suficientes.

Este caso difere do caso Illumina/Grail, em que foi a própria Comissão que incentivou os EM a solicitarem uma remessa que lhe permitisse analisar a concentração, que não atingia os limiares de notificação à Comissão ou a qualquer autoridade nacional da concorrência. Nessa ocasião, o TJUE pronunciou-se contra a ação da Comissão, considerando que o artigo 22.º do Regulamento das Concentrações não deve ser utilizado como um método de escrutínio de operações não notificáveis, mas sim como um instrumento para os EM que não dispõem de regimes de controlo das concentrações agirem contra operações suscetíveis de afetar negativamente a sua jurisdição e, de um modo mais geral, o mercado interno.

De qualquer modo, o presente processo sublinha a importância de uma análise pormenorizada e de assessoria especializada no que diz respeito às estratégias de notificação das concentrações, especialmente - mas não só - quando envolvem jurisdições que não têm um regime nacional de controlo das concentrações, ou que introduziram alterações a esse regime para incorporar poderes de intervenção e permitir a investigação de operações que não atingem os limiares de notificação normais.

29 de julho de 2025