IRS e Criptoativos: A "Conversão Técnica"

2025-12-10T12:44:00
Portugal
Exclusão de tributação em criptoativos: análise da Informação Vinculativa n.º 28969, de 31 de outubro de 2025
IRS e Criptoativos: A
10 de dezembro de 2025

Na recente Informação Vinculativa n.º 28969, de 31 de outubro de 2025, a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) adotou um entendimento sobre o tratamento fiscal da troca de um criptoativo por uma “stablecoin” como passo intermédio para a sua conversão em euros. A AT qualificou esta operação de permuta de criptoativos como uma “conversão técnica” sem relevância fiscal autónoma. Esta interpretação sobre a tributação de mais-valias em criptoativos, embora aparentemente pragmática, gera incerteza por carecer de suporte legal expresso, sendo crucial que os investidores em criptoativos e contribuintes compreendam as suas implicações fiscais.

Como funciona a tributação de mais-valias em criptoativos?

O Código do IRS estabelece um regime dual para a tributação de mais-valias de criptoativos. Por um lado, o n.º 19 do artigo 10.º do CIRS determina que "são excluídos os ganhos obtidos, bem como as perdas incorridas, resultantes das operações previstas na alínea k) do n.º 1 relativas a criptoativos detidos por um período igual ou superior a 365 dias". Esta exclusão de tributação aplica-se a qualquer forma de alienação onerosa, seja por moeda fiduciária, outros criptoativos, bens ou serviços. Por outro lado, o n.º 20 do mesmo artigo estipula que, para criptoativos detidos por menos de 365 dias, se a contraprestação assumir a forma de outros criptoativos ("crypto-to-crypto"), "não há lugar a tributação, atribuindo-se aos criptoativos recebidos o valor de aquisição dos criptoativos entregues".

Qual o objetivo do regime fiscal de criptoativos?

Este regime fiscal visa, por um lado, tributar os ganhos especulativos através da tributação de mais-valias de criptoativos detidos por menos de 365 dias. Por outro lado, estabelece um diferimento de tributação para as permutas entre criptoativos ("crypto-to-crypto"), adiando a tributação para o momento da conversão em moeda fiduciária, quando o ganho se realiza efetivamente.

O que estava em causa nesta Informação Vinculativa?

No caso analisado, um contribuinte questionou a AT sobre o enquadramento fiscal de uma operação de duas fases:

  • a conversão de um criptoativo detido há mais de 365 dias numa "stablecoin" (como a USDC), por inexistência de par de negociação direto com euros,
  • seguida da sua imediata conversão em moeda fiduciária.

O objetivo era confirmar se a mais-valia de longo prazo, apurada no final da operação, beneficiaria da exclusão de tributação.

Qual foi a posição da Autoridade Tributária?

A AT concluiu que, nestas circunstâncias, a conversão intermédia para uma "stablecoin", quando meramente instrumental e imediata, constitui uma "conversão técnica" sem autonomia fiscal. Consequentemente, o facto tributário ocorreria apenas na conversão final para euros. Mais acrescenta que, se o criptoativo original tivesse sido detido por mais de 365 dias, a mais-valia apurada nessa conversão final estaria excluída de tributação, validando a pretensão do contribuinte.

Análise Crítica: Os Problemas da "Conversão Técnica"

A AT fundamenta a sua posição em duas ideias nucleares:

  • a centralidade do prazo de detenção superior a 365 dias para a exclusão de tributação e
  • a neutralidade fiscal das permutas crypto-to-crypto.

Contudo, a posição da AT revela-se juridicamente frágil na sua interpretação das normas subjacentes. Ao ficcionar a figura da "conversão técnica" para ignorar a permuta intermédia, a AT desconsidera que a "stablecoin" é um novo criptoativo, distinto do original. A lei é clara: a permuta de um criptoativo por outro constitui uma alienação. Consequentemente, o prazo de detenção do novo ativo (a “stablecoin”) começa a contar do zero, e o seu valor de aquisição corresponde ao valor de mercado nesse momento. Este tratamento difere do aplicável às permutas de criptoativos detidos por menos de 365 dias, em que o valor de aquisição dos criptoativos recebidos é o dos criptoativos entregues.

Aplicação Estrita da Lei em 3 Passos

Uma leitura estrita da lei levaria, portanto, a um resultado diferente. Vejamos o passo-a-passo:

1.    A troca do criptoativo original (detido há mais de 365 dias) pela "stablecoin" é uma alienação onerosa. A mais-valia gerada nesta operação está excluída de tributação, nos termos do n.º 19 do artigo 10.º do CIRS.

2.    A "stablecoin" é um novo ativo. O seu valor de aquisição corresponde ao seu valor de mercado (em euros) à data em que foi recebida em troca, e o seu prazo de detenção inicia-se nessa mesma data.

3.    A venda imediata da "stablecoin" por euros constitui uma segunda alienação. Uma vez que este ativo foi detido por menos de 365 dias, o resultado desta operação é relevante para IRS. Na prática, esta transação gerará tipicamente uma perda fiscal de curto prazo (devido a comissões e variações de paridade), cujo saldo negativo pode ser reportado e deduzido a mais-valias da mesma natureza nos cinco anos seguintes, mediante englobamento (artigo 55.º, n.º 1, alínea d) do CIRS).

Quais os riscos práticos desta interpretação da AT?

Ainda que a solução da AT pretenda ser pragmática, a criação de conceitos sem base legal gera enorme insegurança jurídica. Desde logo, a noção de “conversão técnica” “imediata” para “stablecoins” suscita uma avaliação factual: quanto tempo é imediato? Em que condições se considera que uma permuta foi “apenas para viabilizar” a alienação em moeda fiduciária?  Estas questões, que a lei não coloca, ficariam sujeitas à livre apreciação da AT em cada caso, transferindo para o contribuinte um ónus de prova complexo e desnecessário.

Conclusão: Segurança Jurídica vs. “Pragmatismo Fiscal”

Em suma, a aplicação estrita do Código do IRS não só é a abordagem juridicamente mais segura para a tributação de criptoativos, como se revela fiscalmente mais eficiente, ao permitir a cristalização de uma perda fiscal reportável. A interpretação veiculada pela AT nesta Informação Vinculativa sobre a “conversão técnica” de criptoativos, além de não vinculativa para outros contribuintes, introduz critérios subjetivos e um ónus de prova desnecessário na tributação de mais-valias. Em qualquer caso, é fundamental analisar o caso concreto e perceber que implicações fiscais esta interpretação pode ter para os investidores em criptoativos e qual a documentação de suporte necessária para cada passo da operação em análise.
10 de dezembro de 2025