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SubscreverA decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) de 4 de setembro de 2025 (C-726/23, ECLI:EU:C:2025:646) resolve duas questões prejudiciais levantadas por um tribunal romeno sobre a interpretação da Diretiva IVA (2006/112/CE) em relação à aplicação prática dos ajustamentos dos preços de transferência.
O caso surge na sequência de um contrato celebrado entre a Arcomet Bélgica (empresa-mãe) e a Arcomet Roménia (filial), pelo qual a empresa-mãe prestava serviços comerciais à filial e assumia riscos económicos em troca de uma remuneração. Concretamente, a Arcomet Roménia comprometia-se a pagar, no final de cada ano, um montante correspondente à parte da margem de exploração que obtivesse num montante superior a 2,74 %. Por outro lado, se a margem caísse abaixo de –0,71 %, o pagamento seria devido em sentido inverso.
Perante esta situação, são apresentadas duas questões prejudiciais ao TJUE. Concretamente, a primeira questão solicita que se determine a sujeição ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) dos ajustamentos de avaliação anuais de determinadas operações intragrupo, de acordo com o método da margem líquida da operação (“MMLO”, sigla da expressão inglesa “transactional net margin method”). Através da segunda questão, coloca-se a questão de saber se a Administração Tributária pode exigir, além da fatura, outros documentos para permitir a dedução do IVA suportado.
Aplicação do IVA aos ajustamentos dos preços de transferência
Para responder à primeira questão, onde se procura determinar se existe uma prestação de serviços “a título oneroso” na aceção do artigo 2.º, n.º 1, da Diretiva IVA, o TJUE recorda, à semelhança do que já frisou noutras decisões, que “uma prestação de serviços só é efetuada «a título oneroso», na aceção do artigo 2. °, n.º 1, alínea c), da Diretiva IVA, e, por conseguinte, só está sujeita a este imposto, se existir entre o prestador e o beneficiário uma relação jurídica no âmbito da qual são realizadas prestações recíprocas, constituindo a retribuição recebida pelo prestador o contravalor efetivo de um serviço individualizável prestado ao beneficiário”. Tal acontece se existir um nexo direto entre o serviço prestado e o contravalor recebido”.
Tendo em conta o exposto, o TJUE confirma que os pagamentos efetuados pela Arcomet Roménia constituem a remuneração das atividades realizadas pela Arcomet Bélgica, uma vez que cumprem as condições acima indicadas. Em suma, para o TJUE, o facto de o quadro em que a operação é realizada ser um ajustamento de preços de transferência não impede de considerar que a “retribuição“ recebida pelo prestador constitui “o contravalor efetivo de um serviço individualizável prestado ao beneficiário.”. Esta conclusão baseia-se, contudo, na análise do caso concreto objeto de decisão pelo TJUE, pelo que não se trata de um critério aplicável em todos os casos.
Além disso, o TJUE considera que não se trata de uma remuneração voluntária, aleatória, dificilmente quantificável ou incerta. Nesse sentido, o facto de se tratar de uma remuneração variável, no caso concreto, não invalida a existência de um nexo direto entre o serviço prestado e a remuneração recebida, na medida em que, conforme salientado pelo advogado-geral nas suas conclusões, “as modalidades desta remuneração são fixadas antecipadamente nesse contrato e segundo critérios precisos, pelo que, enquanto tal, a referida remuneração é desprovida de caráter aleatório”.
Quanto à possibilidade de a empresa-mãe compensar o excesso de perdas da filial, o TJUE considera que “não é, em nenhum caso, suscetível de quebrar o nexo direto entre a prestação de serviços em causa e a contrapartida recebida”, sendo relevante para este efeito o contexto factual do litígio principal descrito pelo órgão jurisdicional remetente, em que o ajustamento (em todos os anos objeto do litígio) determinava um pagamento a favor da Arcomet Bélgica, a prestadora dos serviços.
Por conseguinte, em resposta à primeira questão prejudicial considera-se que “a remuneração de serviços intragrupo, prestados por uma sociedade-mãe à sua filial e detalhados contratualmente, que é calculada em conformidade com um método recomendado pelas Orientações da OCDE e que corresponde à parte da margem de exploração superior a 2,74 % realizada por essa filial, constitui a contrapartida de uma prestação de serviços efetuada a título oneroso, abrangida pelo âmbito de aplicação do IVA”.
Obrigações formais
Quanto à segunda questão prejudicial, o TJUE esclarece que o direito à dedução pode ser condicionado à apresentação de provas suplementares à fatura, desde que tal seja necessário e proporcional para comprovar a realidade do serviço e a sua imputação a operações tributáveis, num caso em que as faturas não cumprem todas as condições formais exigidas pela regulamentação. Ou seja, o acórdão valida a solicitação de provas adicionais quando as faturas são demasiado genéricas (por exemplo, sem natureza nem quantidade de serviços), não sendo suficiente invocar o MMLO como “ajuste contabilístico” desvinculado de prestações reais.
Por sua vez, a sentença recorda o critério consolidado do TJUE sobre a impossibilidade por parte dos Estados-Membros de negar a dedução do IVA com base apenas no incumprimento das condições formais da fatura exigidos pela regulamentação interna (transposição da Diretiva IVA). Nesses casos, as autoridades fiscais do Estado-Membro podem verificar o cumprimento das condições materiais para a dedução e exigir provas adicionais à fatura.
Conclusões e aplicação prática
A decisão do TJUE de 4 de setembro de 2025 assume particular relevância, uma vez que clarifica uma área tradicionalmente difusa na prática da UE (a título de exemplo, veja-se este documento do grupo de peritos em IVA da Comissão Europeia), permanecendo ainda questões pendentes de resolução em matéria de preços de transferência e IVA (por exemplo, o reenvio prejudicial Stellantis Portugal, C-603/24, apresentada em 2024, que ainda não teve decisão).
O acórdão confirma que os ajustamentos de fim de ano, típicos de determinadas políticas de preços de transferência e diretamente ligados a serviços efetivamente prestados, podem, em determinadas circunstâncias, estar sujeitos a IVA, com as implicações que daí decorrem, sobretudo entidades com dedução limitada do imposto.
Neste contexto, será necessário rever os contratos intragrupo que aplicam o método MMLO, a fim de avaliar se os montantes ajustados podem ser qualificados como contrapartidas diretamente atribuíveis a prestações de serviços concretos. Essa análise deverá incidir, em especial, sobre a descrição dos serviços nos contratos e nas correspondentes faturas - natureza, montante, método de cálculo e período a que se referem). Em termos práticos, o acórdão do TJUE resolve um caso concreto que conduz a esta conclusão, sem que se possa generalizar o entendimento a todas as situações. Daí a necessidade de uma revisão detalhada de cada contrato, à luz dos critérios delineados pelo TJUE no acórdão em análise.
Esta revisão revela-se particularmente relevante para entidades com direito limitado à dedução do IVA suportado – como as que operam nos setores financeiro, da saúde ou imobiliário -, nos quais a sujeição destes ajustamentos a IVA poderá representar um custo fiscal significativo. Para estes contribuintes, é igualmente pertinente a recente jurisprudência do TJUE sobre a determinação da base tributável (Högkullen AB, C-808/23, ECLI:EU:C:2025:516), que admite que a valorização aceite para efeitos de IVA possa divergir da resultante da metodologia utilizada para efeitos de preços de transferência.
Por fim, ainda que o sujeito passivo beneficie de dedução integral do IVA suportado, o acórdão eleva o nível de exigência quanto à rastreabilidade probatória - sem a converter numa auditoria à “eficiência” empresarial -, ao confirmar que o exercício do direito à dedução pode depender da apresentação de elementos complementares à fatura que comprovem a efetiva prestação dos serviços (tais como, relatórios de trabalho, indicadores de desempenho - KPIs, ou correspondência com processos e benefícios concretos).
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